terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O guardador de rebanhos




O guardador de rebanhos  

Num meio dia de fim de primavera 

Tive um sonho como uma fotografia 
Vi Jesus Cristo descer à terra, 
Veio pela encosta de um monte 
Tornado outra vez menino, 
A correr e a rolar-se pela erva 
E a rir de modo a ouvir-se de longe. 
Tinha fugido do céu, 

Era nosso demais para fingir 

De segunda pessoa da Trindade. 
No céu era tudo falso, tudo em desacordo 
Com flores e árvores e pedras, 
No céu tinha que estar sempre sério 
E de vez em quando de se tornar outra vez homem 
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer 

Com uma coroa toda à roda de espinhos 

E os pés espetados por um prego com cabeça, 
E até com um trapo à roda da cintura 
Como os pretos nas ilustrações. 
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe 
Como as outras crianças. 
O seu pai era duas pessoas 
Um velho chamado José, que era carpinteiro, 
E queriam que ele, que só nascera da mãe, 
E nunca tivera pai para amar com respeito, 
Pregasse a bondade e a justiça! 
Um dia que Deus estava a dormir 

E o Espírito Santo andava a voar, 

Ele foi à caixa dos milagres e roubou três, 
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido. 
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino. 
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz 
E deixou-o pregado na cruz que há no céu 

E serve de modelo às outras. 

Depois fugiu para o sol 
E desceu pelo primeiro raio que apanhou. 
Hoje vive na minha aldeia comigo. 
É uma criança bonita de riso e natural. 
Limpa o nariz no braço direito, 
Chapinha nas poças de água, 
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as. 
Atira pedras nos burros, 
Rouba as frutas dos pomares... 
A mim ensinou-me tudo. 

Ensinou-me a olhar para as cousas, 

Aponta-me todas as cousas que há nas flores. 
Mostra-me como as pedras são engraçadas 
Quando a gente as tem na mão 
E olha devagar para elas. 
E depois, cansado de dizer mal de Deus, 
O Menino Jesus adormece nos meus braços 
E eu levo-o ao colo para casa. 
.......................................................................... 
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. 
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. 
Ele é o humano que é natural, 
Ele é o divino que sorri e que brinca. 
E por isso é que eu sei com toda a certeza 
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro. 
E a criança tão humana que é divina 
É esta minha quotidiana vida de poeta, 
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre, 
E que o meu mínimo olhar 
Me enche de sensação, 
E o mais pequeno som, seja do que for, 
Parece falar comigo. 
A Criança Nova que habita onde vivo 

Dá-me uma mão a mim 

E a outra a tudo que existe 
E assim vamos os três pelo caminho que houver, 
Saltando e cantando e rindo 
E gozando o nosso segredo comum 
Que é o de saber por toda a parte 
Que não há mistério no mundo 
E que tudo vale a pena. 
A Criança Eterna acompanha-me sempre. 

A direção do meu olhar é o seu dedo apontando. 

O meu ouvido atento alegremente a todos os sons 
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas. 
Damo-nos tão bem um com o outro 
Na companhia de tudo 
Que nunca pensamos um no outro, 
Mas vivemos juntos a dois 
Com um acordo íntimo 
Como a mão direita e a esquerda. 
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens 

E ele sorri, porque tudo é incrível. 

Ri dos reis e dos que não são reis, 
E tem pena de ouvir falar das guerras, 
E dos comércios, e dos navios 
Que ficam fumo no ar dos altos-mares. 
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade 
Que uma flor tem ao florescer 

E que anda com a luz do sol 

A variar os montes e os vales, 
E a fazer doer aos olhos os muros caiados. 
Depois ele adormece e eu deito-o 
Levo-o ao colo para dentro de casa 
E deito-o, despindo-o lentamente 
E como seguindo um ritual muito limpo 
E todo materno até ele estar nu. 
Ele dorme dentro da minha alma 

E às vezes acorda de noite 

E brinca com os meus sonhos, 
Vira uns de pernas para o ar, 
Põe uns em cima dos outros 
E bate as palmas sozinho 
Sorrindo para o meu sono. 
................................................................................. 
Quando eu morrer, filhinho, 
Seja eu a criança, o mais pequeno. 
Pega-me tu no colo 
E leva-me para dentro da tua casa. 
Despe o meu ser cansado e humano 
E deita-me na tua cama. 
E conta-me histórias, caso eu acorde, 
Para eu tornar a adormecer. 
E dá-me sonhos teus para eu brincar 
Até que nasça qualquer dia 
Que tu sabes qual é. 
.................................................................................... 
Esta é a história do meu Menino Jesus, 
Por que razão que se perceba 
Não há de ser ela mais verdadeira 
Que tudo quanto os filósofos pensam 
E tudo quanto as religiões ensinam? 
                                                                                              

Fernando Pessoa 

                                                                                              (Alberto Caeiro)


2 comentários:

  1. Que bonita poesia, Lourdes! Nos permite pensar nos pequenos pela lente dos poetas. Muito boa a escolha. Abraços!

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    1. Alda, querida
      Essa poesia é enorme, então é perciso destacar algumas partes. Quando puderesveja todinha, pois mais vamos lendo mais queremos chegar ao final. É linda e depois vinda do Fernando Pessoa tinha que ser bela. Procurei ver o seu heterônimo Alberto caieiro, percebi para cada um ela escrevia de acordo com o perfil. Acho isso algo mais que interessante no Fernando Pessoa. É incrível como ele lia a alma humana. O calçador de rebanhos ele faz uma espécie de leitura sobre o Menino Jesus verdadeiro, portanto diferente desse que a humanidade vê hoje.
      Um abraço,
      Lourdes

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